ESTUPRO DE VULNERÁVEL Parte 1
- pesquisaeextensaoc
- 13 de jul. de 2021
- 37 min de leitura
TÍTULO: ESTUPRO DE VULNERÁVEL: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DE CASOS QUE TRATAM SOBRE A (DES)NECESSIDADE DE CONTATO FÍSICO PARA DEFLAGRAÇÃO DE AÇÃO PENAL POR CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
FERNANDA GOULART MIGUEL
Orientador: Prof. Alfredo Engelmann Filho – Mestre – UNESC
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado para obtenção do grau de bacharel no Curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC.
Trabalho de Conclusão de Curso aprovado pela Banca Examinadora para obtenção do Grau de Bacharel, no Curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC.
Prof. Júlio Cezar Lopes – Mestre – UNESC
Profª. Mônica Ovinski de Camargo Cortina – Doutora – UNESC
Dedico este trabalho a toda a minha família, a minha melhor amiga, aos amigos e especialmente, a todas as crianças e adolescentes que já foram vítimas de violência sexual.
AGRADECIMENTOS
É com os olhos cheios de alegria e o coração repleto de gratidão, que chego ao fim de um ciclo que marcou a minha história. Durante esses 05 anos de estudo, dedicações, noites sem dormir, aprendizados, vitórias e provações, eu posso dizer que não foi fácil, mas eu consegui. Consegui realizar um sonho que faz parte de mim desde que eu comecei a falar. E quem nunca foi questionado por professores, pais, padrinhos ou amigos: “o que você quer ser quando crescer?”. A minha resposta desde pequena era que eu queria ser advogada.
Claro que o tempo vai passando, outras profissões vão sendo conhecidas, mas o sonho de ser Bacharel em Direito, nunca mudou. Hoje eu tenho orgulho de dizer que eu consegui realizar o maior sonho da minha vida. Tive várias pessoas indo contra a minha escolha, mas foi graças àqueles que sempre me apoiaram que eu nunca desisti de continuar. E são essas pessoas que eu tenho o orgulho de citar aqui.
Agradeço primeiramente a Deus, pois, sem Ele, nada disso seria possível. Foi graças a Ele que eu nunca pensei em desistir, pois sempre recebi forças para continuar, mesmo em dias tão difíceis. Foi graças a Ele que eu tive saúde, sabedoria e discernimento para escolher o caminho da justiça, da verdade e da vida. “Se sabeis que Ele é justo, tomai conhecimento também que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele!” 1 Jo. 2,29.
Agradeço a minha avó Nirza, que foi a pessoa que mais batalhou para que eu chegasse até aqui. Ela com todo amor e carinho do mundo, se esforçou ao máximo todos os dias, e nenhum texto seria bom o suficiente para agradecer por tudo que ela me fez. Eu sei que o meu sonho acabou se tornando o dela também, e eu tenho orgulho de poder segurar esse diploma com a senhora, Vó.
Agradeço também aos meus pais, Adilson e Vanusa, pela educação que me deram, e por me ensinarem a nunca desistir dos meus sonhos. Foi vendo o esforço e a dedicação de vocês pelo trabalho que eu me esforcei para dar sempre o meu melhor.
Aos meus irmãos e as minhas sobrinhas, que sempre me tiveram como “exemplo de vida”, deixo aqui, o meu muito obrigada. Obrigada por me fazerem ser mais forte como profissional e como mulher. São vocês os meus maiores exemplos de vida.
Não posso deixar de agradecer também a minha melhor amiga Raiane, que foi a pessoa que mais teve paciência comigo durante todos esses anos. Ela, que acompanhou todo o meu período de faculdade e esteve comigo todos os dias, tendo por diversas vezes que aturar minhas crises de ansiedade, desespero, medos e incertezas, sendo a minha psicóloga, minha expert em direito das sucessões, minha segunda orientadora, minha base e o meu porto seguro. Para você eu dedico grande parte da minha conquista. Obrigada por acreditar em mim todos os dias e por sempre ter me dito que eu conseguiria alcançar os meus sonhos, seja ele qual for. Sabemos que ainda é só o começo, mas sem esse passo os outros não seriam possíveis de serem alcançados. Obrigada por cada noite de comemoração, seja por uma nota alta, pela apresentação de algum trabalho, por finalmente meu projeto ter sido aprovado, enfim, comemorações não faltaram, mas a maior de todas finalmente chegou.
Obrigada também a minha amiga Rairis, por estar ao meu lado todos os dias e durante todos esses anos. Obrigada pelos abraços antes de pegar o ônibus e pelos dias em que eles eram tudo o que eu mais precisava para me sentir melhor e mais tranquila. Os sorrisos e o “boa sorte na prova”, sempre vieram quando eu mais precisava, e por tudo isso fica aqui também o meu agradecimento especial.
Obrigada a todos os meus amigos de forma geral e ao meu Grupo de Jovens Soldados de Cristo que eu tanto amo, mas, principalmente, todos aqueles que torceram pela realização deste sonho tanto quanto eu. Sem vocês a vida não teria o mesmo brilho. Obrigada Jonata, Vanessa, Morgana, Ivan, Jeferson, Jefrei, Kethuny, Júlio, Gustavo, Amanda, Bruno, Aureci, Felipe, Pricila e Eduarda. Obrigada pelas vezes em que me ouviram, em que me pediram algum conselho jurídico, ou até mesmo, através das suas indagações, ajudaram a escolher o rumo que a minha monografia seguiria. Obrigada por sonharem o meu sonho.
Aos meus colegas de turma que estão nesta trajetória comigo desde o ano de 2015. Aos apertos que passamos juntos, aos aprendizados, dificuldades, seminários, apresentações, estágios e avaliações. Vocês não só sabem como também viveram essa árdua experiência de vida, mas tornaram a minha mais leve e divertida e, por isso, eu tenho orgulho de dizer que juntos chegamos até aqui. Sei que serão ótimos profissionais e que farão o possível e o impossível para auxiliar aqueles que passarem pelos seus caminhos.
Aos Delegados de Polícia, Lucas de Sá Rezende e Isabel Cristiane Frigheto Fauth e, aos Agentes, Alex Etevaldo de Souza e Luciano de Jesus Godinho, deixo aqui o meu eterno agradecimento, pois, foi graças ao apoio de vocês e aos ensinamentos diários, que eu tive ainda mais certeza do caminho que pretendo seguir, e eu espero continuar ajudando a tornar o mundo um lugar muito melhor de se viver.
Aos meus professores, que tanto me ensinaram e transmitiram seus conhecimentos jurídicos, pessoais e profissionais, deixo aqui o meu agradecimento. Ser professor vai além de qualquer outra profissão, porque é graças a ela que muitas pessoas se tornam capacitadas para exercer suas atividades. E é graças a vocês hoje que estou finalizando esse ciclo, e eu espero poder seguir os ensinamentos que vocês me deixaram.
Agradeço também a UNESC, que se tornou a minha Universidade número um, no qual me orgulho muito de poder dizer que hoje sou bacharel em Direito e graduada em uma das melhores Universidades da América Latina.
Por fim, agradeço ao meu professor orientador, Alfredo Engelmann Filho, que além de ter marcado a minha graduação com as suas aulas de Direito Penal I, e as incansáveis dosimetrias da pena, também se disponibilizou a ser meu orientador e me ajudou a tornar possível meu desejo de abordar o tema que eu havia escolhido desde o início da minha graduação.
É com muita alegria que chego ao fim de um novo ciclo da vida, mas que esse seja apenas um grande começo.
“A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda pensou sobre aquilo que todo mundo vê.” Arthur Schopenhauer
RESUMO
O crime de estupro de vulnerável acompanha essa geração por séculos, mas ainda hoje é realidade na vida de milhares de pessoas. O presente tema foi escolhido e será objeto de estudo devido a sua grande relevância social, bem como a necessidade que existe de pensar e repensar nas pessoas, vítimas desse tipo de violência, as quais precisam trazer em juízo toda dor e angústia que traumatizou a sua história. O objetivo deste trabalho é realizar uma análise comparativa de casos que versam sobre a (in)exigibilidade de contato físico para concretização do crime de estupro de vulnerável. Estudar os avanços das leis de proteção a crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais, apontando os pontos positivos e negativos que corroboraram para o desenvolvimento da legislação atual. Apontar os diversos cenários em que o crime de estupro de vulnerável costuma se concretizar, traçando as dificuldades para materialização de provas concretas. Para tanto analisou-se a jurisprudência dos Tribunais de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul que tratam sobre (des)necessidade do contato físico entre a vítima e o agressor para deflagração de ação penal. Os resultados alcançados apontam que o trauma psicológico deixado na vítima de crimes de estupro sem contato físico é tão grave quanto aqueles em que houve o contato físico entre as partes, haja vista as cicatrizes e traumas deixados pelo agressor. Todavia, ainda há doutrinadores que entendem pela necessidade de contato físico para caracterização do crime de estupro de vulnerável.
Palavras-chave: Estupro de vulnerável. Contato físico. Inexigibilidade. Crianças e adolescentes. Violência sexual.
ABSTRACT
The crime of rape of the vulnerable has been with this generation for centuries, but it is still a reality in the lives of thousands of people today. This theme was chosen and will be the object of study due to its great social relevance, as well as the need to think and rethink people, victims of this type of violence, who need to bring in judgment all the pain and anguish that traumatized their story. The objective of this work is to carry out a comparative analysis of cases that deal with the (in) requirement of physical contact to concretize the crime of rape of the vulnerable. Study the advances in laws to protect children and adolescents who are victims of sexual crimes, pointing out the positive and negative points that corroborated the development of current legislation. Point out the different scenarios in which the crime of rape of the vulnerable usually takes place, outlining the difficulties in materializing concrete evidence. For this purpose, the jurisprudence of the Courts of Rio Grande do Sul, Santa Catarina and Mato Grosso do Sul that deal with the (un) need for physical contact between the victim and the aggressor to trigger criminal action was analyzed. The results achieved point out that the psychological trauma left in the victim of rape crimes without physical contact is as serious as those in which there was physical contact between the parties, given the scars and traumas left by the aggressor. However, there are still indoctrinators who understand the need for physical contact to characterize the crime of rape of the vulnerable.
Keywords: Rape of vulnerable. Physical contact. Unenforceability. Children and adolescents. Sexual violence.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
§ Parágrafo
A.C Antes de Cristo ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas
ART Artigo
CF Constituição Federal
CP Código PenalCPPCódigo de Processo Penal
D.C Depois de Cristo
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
N° Número
ONU Organização das Nações Unidas
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
TJMS Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul
TJRS Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
TJSC Tribunal de Justiça de Santa Catarina
SUMÁRIO
2.1 CRIME DE ESTUPRO: SUA ORIGEM E COMPREENSÃO AO LONGO DA HISTÓRIA 16
2.2 A EVOLUÇÃO E O ATUAL ENTENDIMENTO DA RELATIVIZAÇÃO ABSOLUTA DO CONSENTIMENTO DA VÍTIMA 22
2.3 A ATUAL COMPREENSÃO PENAL ACERCA DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL 28
3.1 O CENÁRIO DE ATUAÇÃO DE UM CRIME SILENCIOSO E AS CONSEQUÊNCIAS DEIXADAS NAS VÍTIMAS 35
3.2 OS MEIOS PROBATÓRIOS UTILIZADOS E ADMITIDOS NA APURAÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL 41
3.3 O CRIME DE ESTUPRO CONCRETIZADO EM AMBIENTES VIRTUAIS 47
4.1 O ESTUPRO DE VULNERÁVEL EM ESTUDOS DE CASOS CONPARATIVOS 54
4.2 A (DES)NECESSIDADE DO CONTATO FÍSICO COMO CARACTERIZADOR DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL 60
4.3 A IMPUTABILIDADE DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 65
5. CONCLUSÃO 70
INTRODUÇÃO
Há muito tempo os crimes de estupro perturbam a sociedade, porém, com o passar dos anos sentiu-se a necessidade de se fazer novas adaptações na legislação para que os direitos das crianças e adolescentes pudessem ser, de fato, preservados, pois custou muito para que esses sujeitos tivessem algum direito.
Dentre as inúmeras alterações sofridas, merece destaque o advento da Lei nº 12.015/2009 que tipificou o estupro de vulnerável através do artigo 217-A do Código Penal, Decreto-Lei nº 2.848/1940, passando a trazer uma nova ótica para esse tipo de crime. A partir daí, a vulnerabilidade da vítima passou a ser compreendida pela jurisprudência como sendo absoluta, ou seja, todos aqueles que mantiverem relação sexual com menores de 14 anos de idade estarão praticando uma conduta ilícita, independentemente do consentimento ou outros atos sexuais praticados pela vítima anteriormente.
Além disso, por não ser mais necessário o emprego de violência ou grave ameaça para caracterização do crime de estupro de vulnerável, bastando a comprovação do ato libidinoso, passa a ser discutido se este crime depende exclusivamente da existência de contato físico entre o agressor e o ofendido, principalmente pelo fato da sociedade caminhar para um mundo cada vez mais tecnológico e virtual, onde também neste meio, inúmeros crimes acontecem.
Por já haver algumas decisões proferidas neste sentido, é que será possível desenvolver essa pesquisa, com fins de verificar se realmente é possível que em outros casos semelhantes possa ser caracterizado o crime de estupro de vulnerável sem contato físico entre a vítima e agressor.
Assim, para melhor compreensão do tema é que a pesquisa foi dividida em três capítulos, sendo que no primeiro será tratado sobre os avanços nas leis de proteção a crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais, apontando os pontos positivos e negativos que corroboraram para o desenvolvimento da legislação atual.
Já no segundo capítulo analisar-se-á os diversos cenários de atuação em que esse crime pode ocorrer, trazendo as consequências deixadas nas vítimas, as características psicológicas dos autores, os meios de provas admitidos na apuração do crime e o modo como ele ocorre em ambientes virtuais. No terceiro e último capítulo, será tratado sobre o tema propriamente dito, ou seja, o estupro de vulnerável sem a existência de contato físico, analisando jurisprudência dos Tribunais de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul em estudos comparativos e abordando por fim, a imputabilidade do crime de estupro de vulnerável e a dignidade da pessoa humana.
O presente tema foi escolhido devido a sua grande relevância social, bem como a necessidade que existe de pensar e repensar nas pessoas, vítimas, desse tipo de violência, no qual precisam trazer em juízo toda dor e angústia que traumatizou a sua história.
Para a realização deste estudo será utilizado o método dedutivo em pesquisa do tipo teórica, com emprego de materiais já publicados e jurisprudência que permitirá uma análise de casos concretos que dispensaram a existência de contato físico entre o ofensor e o ofendido para concretização do crime de estupro de vulnerável previsto no artigo 217-A do Código Penal. Entende-se que medidas precisam ser tomadas, porque está sendo tratado sobre um crime silencioso, que acaba deixando marcas em alguém pelo resto da vida.
2 OS AVANÇOS NAS LEIS DE PROTEÇÃO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Apesar do crime de estupro estar presente na sociedade desde os primórdios, a previsão legal deste crime, especialmente contra crianças e adolescentes, apenas ficou expressa no ano de 1940 com a chegada do Código Penal (CP). A referida legislação trouxe em seu artigo 213 e seguintes os crimes contra os costumes, capitulado como: “crimes contra a liberdade sexual.” (RODRIGUES; FARIAS, 2018).
O artigo 224 do CP trazia a previsão legal do estupro, quando praticado contra pessoas tidas como vulneráveis, ou seja, menores de 14 anos de idade (BRASIL, 1940).
Ocorre que se exigia uma violência presumida para que determinado ato sexual (conjunção carnal) fosse tido como estupro de vulnerável. A previsão legal ainda era de que o sujeito passivo obrigatoriamente tinha que ser pessoa do sexo feminino e o sujeito ativo pessoa do sexo masculino (JESUS, 2010, p. 125).
O referido dispositivo ainda trazia consigo um verbo de ação essencial, qual seja, a palavra “constranger”, demonstrando que no caso concreto a vítima estaria sendo obrigada a praticar o ato sexual sem a sua vontade ou consentimento, mediante grave ameaça ou emprego de violência para atingir a finalidade do agente (GRECO, 2019, p. 459).
Posteriormente, já na década de 80, houve uma grande indagação no que diz respeito à presunção de violência, passando a ser compreendida como “relativa”, devido à mudança significativa que as crianças e adolescentes tiveram naqueles anos, onde teoricamente não necessitavam mais da proteção estatal que era defendida até então (MENDES, 2006, p. 11). Ocorre que tal discussão atualmente já é consolidada e será tratada sobre ela no decorrer deste trabalho.
Após ter sido promulgada a Constituição Federal (CF) de 1988, a proteção de crianças e adolescentes tomou uma proporção muito maior, ficando em evidência os seus direitos dentro do ordenamento jurídico, como bem pode ser citado no artigo 227 que segue:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[...] (BRASIL, 1988).
Assim, percebe-se a valorização que crianças e adolescentes passaram a receber, já que tal proteção passou a ser zelada não só pelo Estado, como também pela família e sociedade como um todo. O parágrafo 4º do referido artigo ainda traz sobre “a punição severa, em caso de violência e exploração sexual da criança e do adolescente.” (BRASIL, 1988).
Posteriormente, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que trouxe consigo uma grande revolução social, passando a olhar de forma diferente aqueles que eram desprotegidos, e os colocando em primeiro lugar. Após significativas mudanças, o ECA, atualmente visa a Proteção Integral, em conformidade com o artigo 227 da CF, defendendo basicamente três princípios básicos: a) que crianças e adolescentes são sujeitos de direito; b) merecem prioridade absoluta; e, c) devem ser respeitados por estarem em desenvolvimento (MENDES, 2006, p. 30).
Mesmo com os inúmeros avanços obtidos, especialmente, no que diz respeito às leis de proteção a crianças e adolescentes, demonstrar-se-á que ainda existem muitas lacunas a serem preenchidas no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo no que diz respeito à interpretação das normas. Houve importante evolução desde a primeira previsão legal até os dias atuais, conferindo às crianças e adolescentes proteção integral, garantida pela CF e regulamentada pelo ECA.
Apesar da previsão legal do crime de estupro de vulnerável, tanto no CP de 1940, como no ECA de 1990, se faz necessário dizer que em nenhum dos diplomas normativos a necessidade das vítimas é suprida de forma eficaz, devido ao fato de haver inúmeras complexidades referentes a esse tipo de modalidade criminosa. Quanto ao CP, é possível dizer que o mesmo se encontra defasado há mais de seis décadas e apesar das inúmeras alterações feitas e propostas ainda em andamento, a sua base doutrinária e filosófica ainda continua sendo aquela de 60 anos atrás, necessitando urgentemente de atualização (TOMÉ, 2016).
2.1 CRIME DE ESTUPRO: SUA ORIGEM E COMPREENSÃO AO LONGO DA HISTÓRIA
O termo “stuprum” teve o surgimento em Roma, e designava que o crime de estupro seria caracterizado quando ocorresse a conjunção carnal de forma ilícita, contra mulher virgem ou viúva honesta, mesmo sem uso de violência (PORTINHO, 2005).
A palavra “estupro”, que significa forçar ou obrigar alguém, através de violência ou de ameaças, a praticar o ato sexual contra sua própria vontade, é considerada ainda uma violação (DICIO, 2020, online), uma violação de direitos que rompem os graus mais elevados da dignidade da pessoa humana, por constranger, torturar, desrespeitar e ferir física e psicologicamente a vida do outro, existindo a vontade nítida e clara do autor em submeter à vítima a realização de seus interesses sexuais (ROSA, 2020).
Junto com a parte evolutiva do crime de estupro, será abordada a parte histórica de como ele era praticado pelos agressores, como era visto pela sociedade da época, as punições e consequências utilizadas e, principalmente, o que era necessário ser feito para que o acusado fosse punido por essa conduta. Sabe-se que a história traz uma grande influência para o meio social e compreender o passado, permitirá conhecer melhor o presente e se adequar para o futuro (RODRIGUES; FARIAS, 2018).
Apesar do grande conhecimento jurídico que existe em torno do crime de estupro, havia (e ainda há) um grande tabu a ser quebrado em diversos aspectos sociais. Por ser um crime existente desde os primórdios da sociedade, a visão obtida na época era de que, se esse crime fosse praticado contra “prostitutas”, elas nada teriam a perder, pois supostamente não sentiriam contra si grandes consequências desse delito, por não serem mulheres que carregavam consigo “reputação e honra”, desta forma, nada tinham que zelar perante a sociedade. Ocorre que se esse crime fosse praticado contra mulheres tidas como “honestas” as consequências seriam extremamente severas, uma vez que para “esse tipo de mulher” a mancha desse delito seria levada para o resto da vida (OLIVEIRA, 2016).
No Código de Hamurabi, segundo a lei 130, escrita aproximadamente no ano de 1772 a.C., a pena era de morte, porém, somente para mulheres tidas por virgens casadas, ou seja, que possuíam um contrato de casamento, mas não moravam com seus maridos: “se um awilum amarrou a esposa de um (outro) awilum, que (ainda) não conhecer um homem e mora na casa de seu pai, dormiu em seu seio, e o surpreenderam, esse awilum será morto, mas a mulher será libertada.” (FERRAZ, 2015).
A classe awilum pertenceu ao primeiro Império Babilônico, sendo a primeira e mais numerosa entre todas as classes, composta por camponeses, artesãos, comerciantes e proprietários (PRAVALER, 2020).
Ainda nesta mesma época, porém, trazendo uma visão sobre o Pentateuco, ou seja, os cinco primeiros capítulos da Bíblia tem-se em Deuteronômio 22, 23-27:
Se se encontrar um homem dormindo com uma mulher casada, todos os dois deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma forma, Assim, tirarás o mal do meio de ti. Se uma virgem se tiver casado, e um homem, encontrando-a na cidade, dormir com ela, conduzireis um e outro à porta da cidade e os apedrejareis até que morram: a donzela, porque estando na cidade, não gritou, e o homem por ter violado a mulher do seu próximo. Assim, tirarás o mal do meio de ti. Mas se foi no campo que o homem encontrou a jovem e lhe fez violência para dormir com ela, nesse caso só ele deverá morrer, e nada fareis à jovem, que não cometeu uma falta digna de morte, porque é um caso similar ao do homem que se atira sobre o seu próximo e o mata: foi no campo que o homem a encontrou; a jovem gritou, mas não havia ninguém que a socorresse. Se um homem encontrar uma jovem virgem, que não seja casada, e, tomando-a, dormir com ela, e forem apanhados, esse homem dará ao pai da jovem cinquenta siclos de prata, e ela tornar-se-á sua mulher. Como a deflorou, não poderá repudiá-la em todos os dias de sua vida. (BÍBLIA, DEUTERONÔMIO 22, 23- 27).
Algumas dessas punições demonstram a fragilidade da mulher perante uma sociedade que acreditava na obrigatoriedade de ela ser punida, independentemente de ser a vítima deste crime. Vê-se que ela poderia ser punida de duas entre as quatro formas explanadas no livro de Deuteronômio, quando não seria ainda tratada como um objeto de troca ou uma mercadoria a ser paga com 50 siclos de prata.
Observa-se que a vítima nestes casos, não era a esposa, no qual havia sido tratada como um objeto nas mãos de outro homem, mas sim, o esposo, que havia sido vítima de adultério, ou o pai no qual tinha tido sua filha fornicada. De qualquer modo, a vítima ainda assim eram os homens. Em outros locais, como na Assíria, o pai da vítima teria o direito concedido de estuprar a esposa do autor como forma de puni-lo pelo ato praticado (CONTI, 2016).
Outro relato que também pode ser citado se encontra no livro de Gênesis, capítulo 19 da Bíblia, onde narra à história de Ló, que foi vítima de uma violação sexual advinda de suas próprias filhas. Sodoma e Gomorra estavam em destruição, e Ló, por ser juiz local, fugiu para o monte, levando consigo sua esposa e suas duas filhas. Ocorre que a esposa de Ló olhou para trás e se converteu para adorar uma estátua de sal, assim, Ló a deixou, continuou sua jornada até a cidade de Zoar e lá habitou no monte, com suas duas filhas em uma caverna. Os maridos de ambas haviam falecido junto à destruição de Sodoma e Gomorra, e, assim, para dar continuidade à descendência, elas mantiveram relação sexual com seu próprio pai, após ter lhe embriagado com vinho. As filhas engravidaram e deram à luz a Moabe e Bem-ami. Se tal conduta fosse tipificada nos tempos atuais, se enquadrariam ao artigo 217-A, parágrafo 1º, segunda parte, do Código Penal, uma vez que o pai se encontrava embriagado e inconsciente dos atos a ele praticados (MARINO; CABETTE, 2012, p. 276-277).
A punição que o crime de estupro recebia na Idade Antiga, entre os anos de 3.500 a.C à 476 d.C adivinham da pena de morte, humilhação, apedrejamento, decapitação, enforcamento, corte dos testículos, entre outros, podendo-se até pensar que essas punições tão severas contribuíram para a transformação do crime de estupro em hediondo, uma vez que se assim não fosse considerado, o que antes era visto como algo irreparável, cruel e inaceitável, passaria a ser apenas um crime comum (RODRIGUES; FARIAS, 2018).
Já na Grécia, a violência sexual era punida através de uma multa aplicada ao agressor, sendo, posteriormente, modificada para pena de morte, em casos de violação da norma (CANELA, 2012, p.29). Alguns ainda argumentam que o estupro era visto como direito de domínio do homem (MARGOLIS; CAMPELLO, 2006, p. 30).
No direito hebraico (70 anos d.C), quando uma mulher sofria esse tipo de violação sexual, sendo ela prometida em casamento, aplicava-se a pena de morte ao autor do fato, porém, caso fosse virgem e não era prometida em casamento, deveria pagar 50 siclos de prata ao pai da vítima, sendo a vítima obrigada a casar-se com o homem que a violentou (OLIVEIRA, 2016).
Já no direito germânico, correspondente ao ano de 476 d.C, para que tal crime fosse consumado, era indispensável que a vítima fosse virgem e, que, além disso, o uso da violência se fizesse presente na situação fática. No entanto, caso fosse descoberto que a mulher não era virgem na data em que ocorreu a violência, o crime de estupro não se consumaria (OLIVEIRA, 2016).
Já em Roma o que sempre foi muito nítido entre as relações era o fato de que, o homem exercia um forte poder sobre a mulher, pois eram eles os “pater famílias”, ou seja, eram eles que exerciam o direito de propriedade sobre os membros de sua família, assim, evidentemente, ele também tinha poder sobre a sua esposa, cabendo ao homem o papel de repreender os membros da família (MALUF, 2010, p. 23).
Na Idade Média, correspondente ao ano de 1453 a 1789, a história deste crime no Brasil, deixa relatos da violência indígena por parte de colonizadores que mataram milhares de índios e estupraram as mulheres da época (ALVES, 2004, p. 25-26), que eram vistas pelos Europeus como corpos pecaminosos que levavam ao inferno, e por isso as mulheres europeias andavam totalmente cobertas por roupas. Assim, quando os colonizadores vinham até o Brasil e aqui encontravam as índias belas e atraentes, exploravam delas de maneira sexual, a fim de obter prazer sem ser à custa de laços afetivos (CUNHA, 1992, p. 115-132).
Ainda entendia-se que apenas a mulher tida como virgem era quem poderia figurar como sujeito passivo desse delito, sendo necessário o emprego de violência física para a sua consumação. Assim, caso o crime ocorresse contra uma mulher casada, que já havia tido conjunção carnal, ela estaria proibida de ser o sujeito passivo deste delito (HUNGRIA, 1981, p. 104).
O período colonial marcado pelas ordenações Filipinas, entre os anos de 1500 a 1822, previam em seu Livro V, Título XXIII, o estupro voluntário de mulher virgem, no qual obrigava o autor do delito a se casar com a vítima, e não podendo assim fazer, deveria pagar-lhe um dote. Ainda assim se não fosse possível, o autor deveria ser açoitado e degredado, salvo se pertencesse a uma classe social muito renomada. O Título XVIII ainda previa o estupro violento, que era punido com a pena de morte aplicada ao autor, mesmo se ele aceitasse se casar com a vítima (PRADO, 2010, p. 597).
Foi na idade moderna que surgiram as primeiras bases dos Direitos Humanos da Primeira Geração, como eram assim conhecidos. Neste período, já era comum se ter a ideia de liberdade, direitos cíveis e políticos:
Os direitos de primeira geração entram na categoria do status negativo da classificação de liberdades e fazem também ressaltar a ordem dos valores políticos a nítida separação entre a sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do pensamento liberal teor clássico. (BONAVIDES, 2015, p. 578).
A palavra “estuprador” foi mencionada pela primeira vez no século XIX, trazendo grande cunho racista em sua utilização. Tal palavra adveio do termo Rapenigger, ou seja, “estuprador negro”, demonstrando a grande realidade da época em que homens brancos raramente seriam punidos pela prática desse crime, e se assim ocorresse, suas penas não eram tão severas quanto a aquelas aplicadas a homens negros (MÉNDEZ, 2016).
Após a independência política no País, as primeiras leis começaram a ser elaboradas e o primeiro código penal brasileiro foi nomeado como Código Criminal do Império de 1830. O referido código trouxe a previsão de vários delitos sexuais em seu capítulo II, denominado como: “Dos crimes contra a segurança da honra”, conhecido de modo geral pela Lei que previa o crime de estupro e punia os atos delituosos com pena de desterro (exílio) de um a três anos para fora da comarca em que residia a vítima, sendo ela menor de 17 anos e virgem, conforme previsão legal do artigo 219 (RODRIGUES; FARIAS, 2018).
Já nos artigos seguintes, a previsão era de que se o estuprador tinha a vítima em seu poder e/ou sob a sua guarda, ou então se o estupro ocorresse por parte de um parente em grau que não fosse permitido o casamento, nestas duas hipóteses o estuprador deveria ser punido com desterro de dois a seis anos, além de ter que dar um dote à vítima. Ocorre que, em casos de estupro em que se consistia a cópula carnal por meio de violência e/ou ameaça contra mulher honesta, a pena era de três a doze anos de prisão, já no caso de ser mulher prostituta, a pena era menor, ou seja, entre um mês e dois anos de prisão (PRADO, 2010, p. 597).
Anos depois surge o Código Penal de 1890, tendo as previsões do crime de estupro no Título VIII, intitulado: “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. O artigo 266 trazia a previsão legal do atendado violento ao pudor, que consistia na aplicação de pena de prisão de um a seis anos contra aqueles que tivessem violado a integridade sexual de pessoa menor de idade (BRASIL, 1890).
Também no mesmo Título, estava previsto o crime de posse sexual mediante fraude, que também tinha como aplicação de pena a prisão de um a seis anos, porém, quando este crime fosse cometido contra mulher pública ou prostituta, a pena seria reduzida entre seis meses a dois anos de prisão celular. No parágrafo segundo, havia a previsão de aumento da quarta parte, caso o crime ocorresse em concurso de duas ou mais pessoas. O artigo 269 trazia o conceito de estupro do modo como era entendido na década de 80, onde o homem continuava sendo visto no polo ativo do crime e a mulher apenas no polo passivo, sendo ainda necessário o uso de violência (força física). Já não havia mais distinção entre mulher virgem e mulheres casadas (BRASIL, 1890).
A Lei nº 2.992 de 25 de setembro de 1915 modificou o crime de violência carnal, substituindo o artigo 266, parágrafo único, por dois novos parágrafos, onde o primeiro previa a conduta de excitação, favorecimento ou facilitação a corrupção de pessoa de um ou de outro sexo, a qual fosse menor de 21 anos, e o induzimento a atos desonestos, que poderiam ser levados a um vício que prejudicasse a sua inocência ou alterasse o seu senso moral para um modo mais pervertido. Já o parágrafo segundo continha o crime de corromper pessoa menor de 21 anos, independente do sexo, com ela ou contra ela, atos de libidinagem. A pena era de dois a quatro anos de prisão (BRASIL, 1915).
Apesar de ter acontecido uma grande evolução do crime de estupro ao longo da história, muitas mudanças precisaram ser feitas, mesmo com a criação do Código Penal de 1940.
Bitencourt (2018, p. 57) ensina que “não é necessário que se esgote toda a capacidade de resistência da vítima, a ponto de colocar em risco a própria vida, para reconhecer a violência ou grave ameaça”.
Fazendo uma análise comparativa do conceito dado ao crime de estupro do Código Penal de 1940, até a sua atual compreensão, pode-se observar tamanha evolução obtida. Em 1940, o crime de estupro, previsto no Título VI, que tratava dos crimes contra os costumes, trazia em seu artigo 213 a seguinte redação: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, ou seja, deixava uma grande limitação quanto ao sujeito ativo e passivo citado no artigo, necessitando ainda do emprego de violência ou grave ameaça para concretização do delito (SANTOS, 2013).
Mas a evolução recebida junto ao Código Penal de 1940 e que pode aqui ser citada, é no que diz respeito à condição da mulher, que não mais precisava ser virgem ou honesta para ser vítima do crime de estupro, bastava ser mulher.
Com a forte reação do movimento feminista entre o final do século XIX e início do século XX, a cultura contra o estupro passou a ter um grande reconhecimento no ocidente. Ocorre que no Brasil, apenas em 2009 é que se iniciou o debate sobre o crime de estupro e os direitos femininos que precisavam ser reconhecidos, pois, antes, a mulher era tida como submissa às vontades impostas aos homens e os crimes de estupro, mesmo que praticados contra a mulher, tinham como vítima o marido ou o pai, por não terem mais como “propriedade/objeto” uma mulher pura e digna (FAHS, 2016).
Após breve explanação do item um deste estudo, que tratou sobre o surgimento do crime de estupro e a sua compreensão histórica, passará a ser demonstrada a evolução e o atual entendimento da relativização absoluta do consentimento da vítima.
2.2 A EVOLUÇÃO E O ATUAL ENTENDIMENTO DA RELATIVIZAÇÃO ABSOLUTA DO CONSENTIMENTO DA VÍTIMA
Em 1890, a legislação entendia que a presunção de violência ocorreria sempre que a vítima tivesse 14 anos de idade ou menos, considerando a realidade social da época. Do ponto de vista jurídico, os impúberes ou dementes não eram capazes de manifestar seus interesses, desejos e vontades, nem mesmo de consentir com algum ato que seria praticado contra si. Assim, mesmo não sendo impedido de manifestar suas vontades e interesses, essas, não seriam levadas em consideração pelo poder legislativo, vez que não eram tidas como atos válidos (HUNGRIA, 1981, p. 225).
O Código Penal de 1940, apesar de ser ainda, o código de normas vigente no país, sofreu inúmeras alterações as quais serão aqui citadas.
O primeiro fator importante é que no código de 1940 havia a presunção de inocência com relação aos menores de 16 anos, ou que possuíssem deficiência mental e não podiam oferecer resistência no momento do fato. Percebeu-se, porém, que havia certa necessidade em se definir parâmetros legislativos para a prática de determinados atos da vida, sejam eles de natureza cível ou penal (HUNGRIA, 1981, p. 227-229).
Assim, houve um projeto de lei para reduzir o efeito de presunção de violência, no qual foi apresentado manifestação pelo Ministro Campos, in verbis:
Como se vê, o projeto diverge substancialmente da lei atual: reduz, para o efeito de presunção de violência, o limite de idade da vítima e amplia os casos de tal presunção (a lei vigente presume a violência no caso único de ser a vítima menor de dezesseis anos). Com a redução do limite de idade, o projeto atende à evidência de um fato social contemporâneo, qual seja a precocidade no conhecimento dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a innocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade o negar-se que uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, dos segredos da vida sexual e do risco que corre se se presta à lascívia de outrem. (CAMPOS, 1940).
Hungria (1981, p. 229) ao fazer o seu comentário sobre o artigo 224 do Código Penal, argumentou dizendo que a presunção de violência não seria absoluta, e que ela havia se dado, devido ao fato de ter sido retirado do artigo 293, a expressão “não se admitindo prova em contrário”. Tal argumento foi baseado em um entendimento Italiano que aboliu a presunção de violência, e gerou um grande alvoroço entre os juristas.
Anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestou através do Habeas Corpus nº 73.662-9, sobre a presunção de violência, onde o Ministro Relator Marco Aurélio de Melo declarou pela primeira vez que, as pessoas deveriam começar a rever os seus conceitos, pois, nos atuais dias já não seriam vistas crianças, mas sim moças de 12 anos de idade, as quais já estariam precocemente desenvolvidas psicologicamente e fisicamente preparadas para entender as consequências que seus atos ou escolhas acarretariam (BRASIL, 1996a).
Nota-se como as mudanças sociais e as mudanças de pensamentos acabam alterando o contexto em que as pessoas já eram acostumadas a viver. As tecnologias podem ser citadas, como um grande meio influenciador de informações, dadas a todo o instante, de modo a causar um “amadurecimento acelerado” na grande parte das crianças inseridas neste contexto social. Essa é uma realidade já existente em nosso país, de modo que não se devem fechar os olhos para tal situação, vez que essas crianças, tidas por vulneráveis, menores de 14 anos de idade estariam se tornando adultos precocemente e assumindo responsabilidades que deveriam apenas ser assumidas posteriormente, in verbis:
O panorama acima retratado é verificado de forma mais corriqueira nas regiões Norte e Nordeste do nosso País, sobretudo nas localidades mais carentes e afastadas dos grandes centros, em que muitos adolescentes, com idades inferiores a catorze anos, por se tornarem pais muitos jovens acabam por vivenciar verdadeiras uniões estáveis, assumindo, assim, compromissos e afazeres de adultos. Nesse contexto, fechar os olhos para essa realidade seria o mesmo que tornar criminosos muitos pais de família que por terem desposado suas mulheres ainda adolescentes, incidiriam, não obstante o dever conjugal de coabitação entre eles existente, de forma reiterada na figura típica do estupro, praticado em continuidade delitiva, até o alcance por sua esposa/convivente da idade catorze anos. Mostra-se necessária a unificação das idades dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Penal. A proteção, pelo segundo, da dignidade sexual dos menores de 14 anos de forma rígida na maioria das vezes tem se mostrado inócua, já que muito mais adequado à realidade social brasileira o marco etário previsto no ECA, 12 anos, para a puberdade e desenvolvimento do indivíduo. Os milhares de relacionamentos firmados com e entre pessoas menores de 14 anos não podem ser simplesmente olvidados ou tidos como ofensivos à ordem jurídica penal vigente sem que antes se afira o caso concreto. (ARAUJO; COELHO, 2012, online).
Um menor, de 13 anos, sendo este, vulnerável, caso tivesse vida sexual ativa comprovada, poderia ter sua vulnerabilidade relativizada? Ou nesses casos deveria ser considerado relativamente vulnerável? A lei jamais poderá deixar de analisar o princípio da intervenção mínima do Estado e o princípio da ofensividade, uma vez que ambos são extremamente relevantes para o Direito Jurídico Penal (NUCCI, 2015, p. 72).
Percebe-se na visão de Queiroz (2008, p. 58-59) a necessidade que havia de ser verificado do caso in concreto, para obter a informação de resistência da vítima ao ato sexual ou da não instigação devido ao fato de já ter experiência com a prática de atos sexuais, e se assim fosse verificado, a comprovação de vulnerabilidade ficaria comprometida.
A proteção penal não pode ter lugar quando for perfeitamente possível uma autoproteção por parte do próprio indivíduo, sob pena de violação ao princípio de lesividade. Finalmente, a iniciação sexual na adolescência não é necessariamente nociva, motivo pelo qual a presumida nocividade constitui, em verdade, um preconceito moral. Assim, ao menos em relação a adolescentes (maiores de doze anos), é razoável admitir-se prova em sentido contrário ao estado de vulnerabilidade, de modo a afastar a imputação de crime sempre que se provar que, em razão de maturidade (precoce), o indivíduo de fato não sofreu absolutamente constrangimento ilegal algum, inclusive porque lhe era perfeitamente possível resistir, sem mais, ao ato. (QUEIROZ, 2008, p. 58-59).
O pensamento majoritário também defendia a ideia de que a relativização deveria ser vista de acordo com os fatos apresentados, levando sempre em consideração se a vítima tinha acesso à matéria sexual ou tivesse maturidade para entender o ato sexual a ela praticado (LOWENKRON, 2016, p.11-12).
Na doutrina, porém, já há entendimentos diversos que entendem pela vulnerabilidade relativa da vítima, do ponto de vista que demonstra que quando ela tem o mínimo que seja de experiência sexual, ou já manteve a prática com vários homens, deveria ser levada em consideração a vulnerabilidade relativa da vítima (NUCCI, 2015, p. 147).
Bitencourt (2018, p. 105) demonstra a distinção entre presunção absoluta de vulnerabilidade e vulnerabilidade relativa. A presunção absoluta ocorre quando, sem haver nenhuma discussão sobre o caso fático, não se admite prova ao contrário, ou seja, a vítima é vulnerável sem qualquer discussão. Já na presunção relativa de vulnerabilidade, importa muito o caso in concreto, pois, a vítima pode ser ou não considerada vulnerável.
Atualmente, o pensamento majoritário garante os direitos de crianças e adolescentes, visando à impossibilidade de relativização, proibindo que qualquer ato sexual venha a ser praticado contra menores de 14 anos.
O constrangimento agressivo previsto pelo novo art. 213 e sua forma mais severa contra adolescentes a partir de 14 anos devem ser lidos a partir do novo art. 217 proposto. Esse artigo, que tipifica o estupro de vulneráveis, substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos, previsto no art. 224 do Código Penal. Apesar de poder a CPMI advogar que é absoluta a presunção de violência de que trata o art. 224, não é esse o entendimento em muitos julgados. O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas, não somente crianças e adolescentes com idade até 14 anos, mas também a pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuir discernimento para a prática do ato sexual, e aquela que não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso; sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática. (BRASIL, 2009).
Vale ainda lembrar que a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), considera “criança” toda a pessoa com idade até os 18 anos de idade, porém, para respeitar o desenvolvimento adquirido e a liberdade sexual conquistada, se respeita o entendimento de que são aquelas entre 14 e 18 anos de idade (SILVA, 2020).
Para que ficasse determinado um posicionamento correto sobre os fatos, o STJ, através da Súmula 593, corroborou com a posição majoritária e decidiu pela presunção absoluta de vulnerabilidade ao entender que o crime de estupro de vulnerável ocorreria sempre que o agente mantivesse relação sexual ou outro ato libidinoso contra pessoa menor de 14 anos, não sendo relevante seu consentimento da relação sexual praticada, experiência que outrora tivesse, ou relacionamento amoroso entre as partes:
Sob a normativa anterior à Lei n. 12.015/2009, que introduziu o art. 217-A no CPB, era absoluta a presunção de violência no estupro e no atentado violento ao pudor (referida na antiga redação do art. 224, “a”, do CPB) quando a vítima não fosse maior de 14 anos de idade, ainda que esta anuísse voluntariamente ao ato sexual.
Em qualquer hipótese (anterior ou posterior à Lei n. 12.015/2009), o consentimento da vítima menor impúbere não tem relevância para infirmar a prática do crime de estupro. A questão, antes tratada como presunção legal, passou a integrar o próprio tipo penal (estupro contra vulnerável).
(BRASIL, 2017c).
Para que ainda assim não houvesse nenhuma dúvida sobre o questionamento de vulnerabilidade ou não da vítima, o STJ ainda aprovou a Súmula 593, declarando que mesmo havendo a vontade da vítima em praticar o ato sexual, o crime de estupro ainda assim restaria caracterizado:
O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. (BRASIL, 2017c).
A edição da Súmula do STJ tinha por objetivo pôr fim a inúmeras dúvidas e discussões que ainda existiam no que diz respeito à vulnerabilidade da vítima, ao entenderem que a vulnerabilidade da vítima seria relativa, e inocentando acusados:
APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ART. 217-A, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. ABSOLVIÇÃO EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO. RECURSO DA ACUSAÇÃO. PRETENSÃO DE CONDENAÇÃO INVIÁVEL. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO QUE NÃO EVIDENCIAM A VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE SEXUAL DA ADOLESCENTE. VÍTIMA QUE NA CONTINUIDADE PASSOU A CONVIVER MARITALMENTE COM O APELADO, CONSTITUINDO UNIÃO ESTÁVEL. GRAVIDEZ POSTERIOR. CARACTERIZAÇÃO DA AUSÊNCIA DE OFENSIVIDADE DA CONDUTA A BEM JURIDICAMENTE TUTELADO. CRIME NÃO CONFIGURADO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. RECURSO
DESPROVIDO. "O mais relevante efeito prático da função dogmática do princípio da ofensividade, em conclusão, consiste em permitir excluir do âmbito do que é penalmente relevante as condutas que, mesmo que tenham cumprido formalmente ou literalmente a descrição típica, em concreto mostram-se inofensivas ou não significativamente ofensivas para o bem jurídico tutelado. Não resultando nenhuma relevante lesão ou efetivo perigo de lesão a esse bem jurídico, não se pode falar em fato típico. (SANTA CATARINA, 2013).
Pelo fato da Súmula 593 do STJ não ter força vinculante, as decisões proferidas na Justiça Comum, Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal, podem divergir entre si, e era isso o que ocorria. A questão da presunção absoluta de vulnerabilidade ainda deixava margem para uma ampla interpretação jurisdicional, fato que foi necessário adotar um posicionamento através do STF para que bastasse o depoimento da vítima para configurar o delito previsto no artigo 217- A do Código Penal, sendo ela menor de 14 anos e não importando as causas que levaram as partes a ter a relação sexual. Segue a ementa do AgRg no HC n. 124830 MT:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL E DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ARTIGOS 213 e 224, ALÍNEA A (NA REDAÇÃO ANTERIOR À LEI 12.015/2009). HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. INADMISSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR HABEAS CORPUS: CRFB/88, ART. 102, I, D E I. HIPÓTESE QUE NÃO SE AMOLDA AO ROL TAXATIVO DE COMPETÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE. ATIPICIDADE. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. MENOR DE 14 ANOS. VULNERÁVEL. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICOPROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE NA VIA ELEITA. INEXISTÊNCIA DE TERATOLOGIA, ABUSO DE PODER OU FLAGRANTE ILEGALIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A presunção de
violência no crime de vulnerável, menor de 14 anos, não é elidida pelo consentimento da vítima ou experiência anterior e a revisão dos fatos considerados pelo juízo natural é inadmita da via eleita, porquanto enseja revolvimento fático-probatório dos autos. Precedentes: ARE 940.701-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 12/04/2016, e HC 119.091, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 18/12/2013. 2. In casu, o recorrente foi condenado à pena de 8 (oito) anos de reclusão, em regime fechado, como incurso no art. 217-A do Código Penal, pelo fato de haver cometido ato sexual com um menino menor de 13 anos de idade em troca de um amortecedor de bicicleta e filmado todo ato em seu celular. 3. A competência originária do Supremo Tribunal Federal para conhecer e julgar habeas corpus está definida, exaustivamente, no artigo 102, inciso I, alíneas d e i, da Constituição da República, sendo certo que o paciente não está arrolado em qualquer das hipóteses sujeitas à jurisdição desta Corte. 4. Agravo regimental desprovido. (BRASIL, 2017b).
No que tange a esse entendimento, já é uníssono o tribunal, após decisão prolatada pelo STJ, através da Súmula 593:
Saliente-se, porém, que a presunção de violência era matéria controversa, geradora de inúmeras teses doutrinárias e jurisprudenciais, já que se discutia a natureza relativa ou absoluta da mencionada presunção. Dessa forma, o legislador entendeu por expungir a questão polêmica, afastando a presunção de violência. A configuração do tipo estupro de vulnerável independe do consentimento da vítima, grave ameaça, violência de fato ou presumida, bastando que o agente mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de catorze anos, como se vê da redação do art. 217-A. (BRASIL, 2010a).
Ao prolatar a referida decisão, o STJ descartou qualquer circunstância fática que pudesse alterar de algum modo à interpretação do texto legal e esse fator foi crucial para se alcançar o resultado atual (NUCCI, 2015, p. 162).
Segundo Bitencourt (2018, p. 113), “menores vulneráveis não têm capacidade para consentir validamente. Portanto, esse “consentimento” é juridicamente inexistente”.
2.3 A ATUAL COMPREENSÃO PENAL ACERCA DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Todo ser humano já se sentiu “vulnerável” em alguma ocasião que a vida colocou em seu caminho, ocorre que apesar dessa situação se transformar em um fator muito marcante na vida pessoal de cada um, não se pode tratar essa “vulnerabilidade eventual” do mesmo modo que se trata a vulnerabilidade do crime de estupro trazida pelo legislador nos artigos 217-A, 218 e 218-A do Código Penal, pois essa última é tida como “absoluta” por proteger àqueles seres inimputáveis que carecem do olhar e da proteção estatal (BITENCOURT, 2018, p.97).
Crianças e adolescentes menores de 14 anos de idade, e também os enfermos ou deficientes mentais não trazem consigo a força e a resistência que um adulto teoricamente possui, e por essa razão eles devem ser considerados vulneráveis absolutos recebendo maior proteção e cuidado. Ocorre que essa vulnerabilidade sofre alteração nos dispositivos seguintes (218-B, 230, §1º, 231, §2º, I, 231-A, §2º, I) deixando de ser tratada como vulnerabilidade absoluta e passando a ser considerada parcial, por exigir, via-de-regra, uma comprovação (menores de 18 anos), porém, para caracterização da primeira (menores de 14 anos) basta a idade da vítima (BITENCOURT, 2018, p. 97).
Frente a uma situação em que o Estado se vê obrigado a enfrentar um tipo de violência que abala as mais sensíveis realidades sociais e criminais, por trazer consequências extremas para a vítima, colocando em risco seu equilíbrio bio- psico-social para sempre (BITENCOURT, 2018, p. 98).
O 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em setembro de 2019 demonstrou um aumento significativo no número de casos de estupro denunciados às autoridades policiais. No ano de 2017, foram registrados 63.157 casos de estupro, número superado no ano seguinte quando se obteve o registro de
66.041 casos, sendo que 53.726 vítimas pertenciam ao sexo feminino (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019).
O crescimento deste número acaba sendo um fator chocante para a sociedade brasileira, principalmente, porque deve ser levado em consideração que grande parte dos casos não são denunciados pela vítima. A fim de enriquecer as investigações, dentre vários métodos novos que possam vir a ser utilizados, existe um que deve ser mantido em todas as hipóteses, que é o fato de após o recebimento da denúncia, ser extremamente importante que o estado tenha disponível profissional capacitado para realização da oitiva da vítima, de modo que ela se sinta em um ambiente agradável e seguro, pois geralmente, as vítimas desse tipo de violência procuram relatar os fatos para pessoas de sua confiança, familiar ou não (FURNISS, 1993, p. 148).
Mesmo diante de muitas situações que precisam ser analisadas, pode ser destacado o avanço nas leis de proteção, principalmente no que diz respeito à criação da Lei nº 12.015/2009 que trouxe a implantação do crime de vulnerável no rol dos crimes hediondos, artigo 217-A e parágrafos 1º ao 4º do Código Penal. Essa alteração retirou qualquer possibilidade de graça, indulto, anistia ou pagamento de fiança em favor do acusado, ocorrendo o cumprimento de pena em regime fechado (CUSTÓDIO; DIAS, REIS, 2016, p. 86).
No ano de 2009 ocorreu uma alteração na redação que se tem sobre o crime de estupro de vulnerável, passando a ser previsto que “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos: Pena - reclusão, de 08 (oito) a 15 (quinze) anos.” (BRASIL, 2009).
Este artigo acabou revogando o artigo 224 do Código Penal, e atualmente se encontra no Capítulo II denominado como “Dos crimes sexuais contra vulnerável”, alterando o posicionamento do STF, conforme segue:
A violência presumida foi eliminada pela Lei n. 12.015/2009. A simples conjunção carnal com menor de quatorze anos consubstancia crime de estupro. Não se há mais de perquirir se houve ou não violência. A lei Crimes em Espécie – Crimes Contra a Dignidade Sexual consolidou de vez a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. (BRASIL, 2010b).
Nota-se que o uso de violência contra a vítima deixou de ser um dos fatores exigidos para caracterização do crime de estupro de vulnerável, bastando que o ato libidinoso seja praticado contra menores de 14 anos. O sujeito ativo envolvido nesta autoria pode ser tanto homem, como mulher, diferente do entendimento primordial.
A questão da vulnerabilidade trazida pelo Código Penal refere-se a qualquer pessoa que se encontra em situação de vulnerabilidade, perigo, coação ou fragilidade e que traz consigo essa condição de fraqueza. Não se trata, portanto, de verificar a capacidade da pessoa no que diz respeito a ter maturidade ou não para a prática de determinados atos sexuais, mas sim da necessidade de proteção que precisam (BITENCOURT, 2018, p. 111).
Cabe ainda mencionar que se o estupro de vulnerável for praticado contra a vítima, sendo ela: namorada, noiva, cônjuge, homossexual, transexual, prostituta, entre outros, não deixará de ser configurado, uma vez que a condição a ser observada aqui é única e exclusivamente a vulnerabilidade da vítima, ainda que exista o seu consentimento.
O crime de Atentado Violento ao Pudor já fora extinto, em razão da nova ótica jurídica aplicada ao crime de estupro que passou a prever que ele será caracterizado com a conjunção carnal ou apenas com o ato libidinoso, podendo ainda haver a figura feminina no polo ativo e a masculina no polo passivo do crime em questão. A Lei nº 13.718/2018, publicada em 25 de setembro de 2018, também trouxe mudanças importantíssimas para os crimes contra a dignidade sexual. Dentre elas, ouve a inserção do novo crime de Importunação sexual, previsto no artigo 215- A do Código Penal, no qual consiste no fato do agente praticar contra a vítima, ato libidinoso, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro (BRASIL, 1940).
Passa-se a analisar o artigo 218 e seguintes, no qual prevê a satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, que não participa do ato sexual ou libidinoso, mas presencia toda a situação a ela exposta. Antes, o artigo
218 previa a punição aos maiores de 14 e menores de 18 anos, porém, em situações que estes estariam sendo induzidos a presenciar o ato libidinoso. Segue a previsão legal:
Art. 218. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. (BRASIL, 1940).
Já o artigo seguinte desdobra o artigo em duas condutas diferentes, a primeira quando praticado o ato libidinoso na presença de alguém para satisfazer a sua lascívia ou de outro ou, induzir a presenciar a conjunção carnal ou ato libidinoso com o meio de obter satisfação da sua lascívia ou de outro. Segue:
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. (BRASIL, 1940).
Já o artigo 218-B trata do favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável, além de estar integrado ao rol dos crimes hediondos. O referido artigo acabou revogando o artigo 244-A do ECA, que tratava sobre a prostituição e a exploração sexual de crianças e adolescentes, que possuía a seguinte redação: “Art. 244-A. Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual.” (BRASIL, 1940).
Nota-se que por vulnerável se entende, pelo artigo 217-A, todo aquele menor de 14 anos de idade, porém, para o artigo 218-B, vulnerável é aquele com idade inferior a 18 anos, litteris:
Art. 218-B: Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.
§1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica- se também multa.
§2º Incorre nas mesmas penas:
- quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo;
- o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo.
§3º Na hipótese do inciso II do § 2º, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento. (BRASIL, 1940).
Trouxe também no artigo 218-C do Código Penal o novo crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, o que já tem previsão legal no artigo 241-A do ECA, porém, difere no que diz respeito ao sujeito passivo do crime, ou seja, quando o delito envolve criança ou adolescente aplica-se o previsto no ECA, mas ao tratar-se de adulto, maiores de 18 anos, deve-se utilizar o Código Penal.
Ainda tratando dessas alterações, houve a nova causa de aumento de pena para os estupros coletivo e corretivo, as quais já tinham previsão no artigo 226 do Código Penal, ganhando uma nova redação no inciso IV deste artigo.
O artigo 234-A do Código Penal também trouxe novas causas de aumento de pena para os crimes contra a dignidade sexual, abrangendo também o alcance a pessoas idosas e com deficiência.
Por último, houve uma alteração no artigo 225 do Código Penal, no qual passou a prever que todos os crimes contra a dignidade sexual seriam de ação pública incondicionada, não havendo mais nenhuma exceção. Antes dessa lei, a redação originária do CP, trazia que, via de regra, a ação penal nos crimes sexuais seriam privadas, havendo exceções. Já a Lei nº 12.015/2009 trouxe a previsão legal de que esses crimes seriam procedidos mediante ação penal pública condicionada à representação, trazendo também algumas exceções.
Assim, por essas e outras razões, é que a lei deve estar sempre em comum acordo com a sociedade e os direitos a serem defendidos por ela.
Continuação na publicação seguinte.
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